Francisco não queria jamais estar sobre as coisas, nem cantar por meio delas. Queria estar com elas num radical sentimento de fraternidade. Elas cantam ao Criador; cabe-nos unirmo-nos ao seu cântico.
A todas chama ternamente de irmãs ou irmãos muito amados: o verme da estrada, a cigarra, a lua e até as enfermidades. Ser irmão e irmã de todos os seres não é para o homem do Paraíso, nascido em Assis, a dedução de algum princípio teológico, mas a expressão de uma ternura fundamental e de uma comoção do coração.
No outono de 1225, encontra-se muito doente, quase cego a ponto de não suportar o mais fraco raio de luz. Sofre interior e exteriormente. Vê a Ordem se transformando já numa instituição com conventos e prescrições, pondo em perigo a simplicidade evangélica.
Exteriormente os estigmas sangram e o enfraquecem sobremaneira. Francisco chega à igrejinha de São Damião. AÍ vive Clara. Cheia de solicitude ela manda construir uma choupana para acolher o companheiro de intuições e de experiências religiosas. Ratos correm por todo o espaço a ponto de impedir qualquer descanso ao seráfico estigmatizado.
Neste contexto de angústia e sofrimento, Francisco, certo dia, entra como que em agonia. No decurso deste transe ouve em espírito uma promessa inaudita: em recompensa por tantos padecimentos receberá um benefício que valor nenhum deste mundo se lhe poderá igualar: "alegra-te, ó irmão, e goza em meio às tuas tribulações e para o futuro estejas seguro como quem já está no meu Reino".
Francisco é tomado de alegria incontida. Já há muito tempo que não podia mais ver o irmão sol, nem a irmã lua, nem apreciar a água corrente e os campos floridos. Mas o coração vê melhor e mais profundamente que os olhos. Com o coração abrasado de júbilo e amor, compôs o Cântico do Irmão Sol para o qual improvisou logo uma radiante melodia.
Aí tudo se reconcilia: o céu com a terra, os homens inimizados entre si, a vida com a morte. O homem novo que estava sendo gestado em Francisco acaba de nascer. Por isso ele é o homem do Paraíso, tão inocente e cheio de luz como no dia primeiro da criação. Valeu o esforço de identificação com o novíssimo Adão Jesus Cristo. Francisco será o "único depois do Primeiro" e quiçá o último cristão no sentido radical desta palavra.
O Paraíso não está totalmente perdido. Quem se despojar como Francisco a ponto de ser ave com a ave, terra com a terra e leproso com o leproso, poderá cantar também com todas as criaturas. Então, o Cântico di Frate Sole terá estrofes sem fim.
De Leonardo Boff, extraído do livro "Francisco de Assis, o homem do Paraíso", Editora Vozes.
Belíssimo texto sobre a estigmatização de S. Francisco, de autoria de Leonardo Boff, que me foi enviado pela irmã Luzia Lapa, da OFS Valongo. Oswaldo